"Mulher é expressão cósmica de vida, é um poema com asas no corpo. Mulher é pensamento, é uma nave espacial ...com curas e feitiços, e se tem veneno é para o beiço dos covardes.” O trecho citado trata-se de uma poesia que pode ser ouvida pela voz de Suede Kinte ao final da Música "Levante Amazona” do Grupo Alafia.
Talvez seja um dos trechos poéticos mais expressivos para mim
sobre o que é ser mulher, principalmente quando ela cita que a mulher pode ser
veneno. Recordo-me, com isso, de todas as vezes que fui veneno para uma
sociedade ainda construída em um alicerce machista e patriarcal, dos momentos
nos quais a minha posição profissional foi questionada, e sei que grande parte
disso é resultado da minha identidade feminina e negra.
A história nos conta que ser mulher e ter um cargo profissional de
destaque não combinam. Nas entrevistas de emprego ainda ressoam as velhas
perguntas: "Você tem filhos? E com quem eles ficarão quando você estiver
trabalhando?” Depois, quando somos aprovadas no processo seletivo, mesmo com as
nossas singularidades e capacidades, ao ascender, somos obrigadas a ouvir
frases como: "Ela só conseguiu porque seduziu o chefe.” Como se dentro de um
corpo feminino não fosse possível existir a capacidade técnica.
Como se a condição de mulher e a realização profissional fossem
incompatíveis.
Uma mulher com sonhos profissionais é veneno para os covardes.
Foi com a constituição de 1934, no Brasil, que as mulheres
passaram a ter direitos trabalhistas em decorrência de suas reivindicações e
também do processo de industrialização. Com jornadas exaustivas, poucos
direitos, e com remuneração inferior a dos homens, as mulheres adentraram o
mercado de trabalho e ainda é sob esse "modo operante” que conduzimos nossa
sociedade na avaliação dos sonhos profissionais femininos. É assustador
constatar que a inserção da proibição de diferenças salariais, entre homens e
mulheres, só se consolidou, legalmente, com a Constituição de 1988. No âmbito
das profissões domésticas, grande parte ocupada por mulheres (destaco aqui
mulheres pretas), somente em 2013 com a
"pec das domésticas”,”garantimos a elas direitos básicos como jornada de
trabalho de 8 horas diárias ou 44 horas semanais.
Segundo dados do IBGE de 2019, nós mulheres, recebemos 77% da
remuneração dos homens, além disso, nossa dupla jornada ainda é um elemento
impeditivo para que possamos nos dedicar mais às nossas profissões. Parece um
absurdo, mas ainda não conseguimos dividir as atividades domésticas de maneira
igualitária entre homens e mulheres, algo que olhando de fora deveria ser no
mínimo simples.
Concluo que o mundo ainda se acovarda ao ver uma mulher que sonha
fora das paredes de seu lar, e o que nós mulheres precisamos pensar, não é em
como deixarmos de ser veneno e sim em uma forma de nossos sonhos serem cada dia
mais livres para voarem por ambientes diferentes daqueles que até o momento
foram e são impostos a nós.
Que todas nós sejamos um veneno letal para aqueles que nos impedem
de sonhar.
Juliana Costa - Palestrante e ativista pró-igualdade racial, Mestre em Ensino, Analista de Inclusão e
Diversidade e membra Colaboradora do GT do Núcleo Negro para Pesquisa e
Extensão NUPE/Rio Preto.