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Lelé Arantes, historiador
Foto por: Divulgação
Lelé Arantes, historiador

Lelé Arantes - Um 7 de Setembro: um entusiasmo infantil que nos atiçava

Por: Lelé Arantes
06/09/2021 às 20:22
Artigos

Nossos desfiles eram realmente cívicos, despidos do ufanismo militar daquelas épocas sombrias do início dos anos de 1970


A poeira era grande, mas a vontade de desfilar era maior.

Nos primeiros anos escolares esperávamos o 7 de setembro com certa sofreguidão. Havia um entusiasmo infantil que nos atiçava. Queríamos marchar. Aqueles eram tempos em que se hasteava a bandeira nacional com as crianças em fila no pátio a cantar o hino pátrio sem que soubéssemos o significado daquelas palavras difíceis. Ainda hoje algumas quase insoletráveis como "o lábaro que ostentas estrelado...” Não há pequi que arreganhe esse vernáculo. 

A gente sofria, mas cantava e, até eu, com muita dificuldade de fala, soltava a voz fanhosa e terrivelmente anasalada para os versos intimamente infernais: "Ouviram do Ipiranga as margens plá..idas / De um povo heroico o brado retumbante / E o .ol da liberdade, em raios .úlgidos / Brilhou no .éu da pátria nesse instante / .e o penhor de..a igualdade / Con.eguimos conquistar com bra.o .orte / Em teu .eio, ó liberdade / Desa.ia o no..o peito a própria morte! Ó pátria amada / Idolatrada / .alve! .alve”.

Fanho sofre.

Eu gostava dos carros alegóricos. 

Nossos desfiles eram realmente cívicos, despidos do ufanismo militar daquelas épocas sombrias do início dos anos de 1970. Os graúdos da cidade, ao lado do prefeito, ficavam sobre a carroceria de um caminhão, bem na frente do Bar do Ponto -- onde pouco depois foi a Padaria Tripan. De manhã, antes do desfile, o caminhão de "água-rua” subia do Bicão e molhava a rua de terra. Mas o calor era tanto que logo o chão estava seco. 

Quando terminei o grupo escolar não mais desfilei. Apesar de aprovado na Admissão, não entrei no ginasial, que só funcionava no período diurno. A partir daí eu via o desfile. Os lindos carros alegóricos que o professor Adalberto Corrêa Gomes fazia e neles estavam sempre, entre outras belas meninas, suas filhas Jussara e Mônica. Porém, há um 7 de setembro que ficou gravado na minha memória de forma indelével.  

Ah, antes, preciso falar da fanfarra. Não podia faltar a fanfarra e as balizas. A fanfarra era composta pelos alunos do ginásio Álvaro Duarte da Almeida. Penso que o Gelindo Sabadotto era o coordenador.  Tenho uma vaga lembrança dos componentes. Acho que o Laurindo, meu primo, irmão do Betinho, filhos da dona Natália, era um deles. O uniforme era bonito. Aliás, as fanfarras sempre tem uniformes bonitos. Calças brancas e jalecos vermelhos, mas sem aquelas cartolas do chapeleiro maluco...

Como ia dizendo, em um dos desfiles, de repente apontou um cavalo, lá longe, e foi se aproximando do palanque. Era o Julinho Stachissini montado no Chiclete e puxando por uma corda o Hilarinho, todo sujo de sangue e hematomas, sem camisa e a calça em frangalhos. Todo mundo imaginou que seria Tiradentes. Não era. Na verdade, era Felipe dos Santos, um desconhecido herói nacional, bem anterior a Tiradentes. Era um dos líderes da Revolta de Vila Rica que, aos quarenta anos, em 1820, foi enforcado e teve seu corpo despedaçado por quatro cavalos, cada um puxando seus braços e pernas, em plena praça pública. 

O quadro de Felipe dos Santos na rua empoeirada de Cosmorama, naquela manhã quente de 7 de setembro, foi mais que simbólico na minha alma ingressando na puberdade. Talvez tenha sido o gatilho que me levou a anos mais tarde, a ingressar no jornalismo e cursar uma faculdade de História. Era a primeira vez que eu tomava contato com herói popular, cuja biografia foi soterrada no período do regime militar, talvez por medo de que os pobres descobrissem a existência do substantivo feminino: revolta.

LELÉ ARANTES
Historiador, Rio Preto.







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