Enquanto leio a comovente história do pai que quer entregar a filha única à rica comerciante da cidade de Ville Rose, para que ela tenha, pelo menos, uma esperança de futuro, ouço no jornal sobre a morte de mais uma criança no Rio de Janeiro. De acordo com levantamento do Instituto Rio de Paz, oito crianças foram baleadas no estado do Rio de Janeiro, desde o início do ano. Todas têm idades entre 9 e 12 anos e moravam em áreas periféricas.
A morte física é chocante.
Impactante. Um silêncio abrupto. É quando se escancara o "cala a
boca” realizado dia a dia,
principalmente da pobreza, da miséria, das negritudes e, de maneira
ainda mais enfática, da mulher
negra. Neste tempo de lembrança da Mulher Negra, Latino-
Americana e Caribenha, me deparei
com Edwidge Danticat. Escritora haitiana, que, como a
protagonista do seu livro "Clara
da Luz do Mar” (Editora Todavia), - esse que eu lia quando
ouvi a notícia de mais um silêncio
abrupto nas comunidades periféricas (ou de seu vir a ser
escondido na criança) - teve de
migrar em busca de futuro. A escritora de 54 anos saiu do Haiti
aos 12 e foi morar nos Estados
Unidos, mas carregou as raízes de seu povo e faz da realidade
de seus ancestrais a matéria prima
da escrita.
Falando das perdas cotidianas, das
batalhes enfrentadas contra um sistema corrupto, da
miséria humana, com o toque da
sensibilidade de quem se importa e de quem carrega em si as
marcas de um povo, Danticat toca
profundamente no território da humanidade. E, enquanto
lia suas letras, pensei: por que
essa mulher não está estampada nas livrarias e sites de livros?
Onde está Edwidge Danticat?
A escritora é premiada
mundialmente, figurando, inclusive, como a primeira autora da história
a receber pela segunda vez o
National Book Critics dos Estados Unidos e o Story Prize. Autora
de mais de 20 obras entre ficção,
não-ficção, infantis, contos e romances, com a abordagens
de temas fortes como a identidade
nacional e a diáspora política, em um trabalho árduo para
manter suas origens e obter o
reconhecimento delas em uma outra cultura. O que fica
explícito em alguns trechos de sua
única obra a que se tem fácil acesso em língua portuguesa:
"Tinha ouvido falar de gente que
fora infantilizada enquanto aprendia uma língua nova, de
gente que acabava limpando casas
ou o traseiro dos filhos dos outros. Ela via essas pessoas
voltarem a Ville Rose no Natal ou
nas férias de verão com penteados extravagantes e roupas
que pareciam caras, mas seus olhos
sempre as traíam. Toda a humilhação que tinham
suportado podia ser detectada ali.
A pele também as traía, as queimaduras do vaporizador da
lavagem a seco ou do lava-rápido
ou das cozinhas de restaurantes, tão visíveis quanto as
marcas a ferro e fogo nos
animais”.
Edwigde Danticat faz do apagamento
do seu povo, da sua cultura e raízes, um grito. Escancara
para o mundo as desventuras do
Haiti, mas exalta a exuberância de sua cultura e a força de
sua gente, que segue firme contra
as intempéries e as injustiças. Assume, como ela disse em
entrevista ao jornalista Jorge
Pontual, o risco de "Criar perigosamente”, inspirada em um
discurso do escritor Albert Camus:
"Para mim, é essa ideia de inspiração, de como alguém é
inspirado por pessoas que sabem
que escreveram um livro que é perigoso ler, ou sabem que é
perigoso escrever um livro
específico, mas agem apesar disso e melhoram a vida de todos
nós”.
Ariana Pereira é mãe, jornalista e
membra do coletivo Mulheres na Política. Mulheres na
Política - Mulheres negras que nos
inspiram.