O mundo dos super-heróis tem algumas similaridades com o mundo dos mortais comuns. Aliás, por isso ele tem graça: os poderes dos super-heróis são justamente a possibilidade de lidar com as agruras cotidianas com habilidades extras
Quem gosta desse
universo já se deparou com o poder de ficar invisível. O herói invisível
consegue fugir de balas, já que o atirador não o vê; pode ouvir planos secretos;
pode desorganizar as ações dos terríveis vilões sem que sejam identificados.
Mal sabem os heróis que dominam o manto da invisibilidade que no mundo real
alguns de nós já nascem ou se tornam invisíveis com o decorrer do tempo e
infelizmente, do lado de cá isso não é super poder.
Aqui, no mundo real,
a história da visibilidade e invisibilidade é um pouco mais complexa. A
existência das pessoas ultrapassa a questão de serem vistas apenas pelos olhos.
Na pandemia tivemos revelada a existência de um número enorme de pessoas
invisíveis. Pessoas que porque não tinham documentos ou porque não tinham
acesso à Internet ou à informação não puderam ser assistidas por nenhum
programa social no período. Homens e mulheres invisíveis e com fome.
Há alguns anos atrás
um psicólogo social, dentro de um experimento social, vestiu uniforme e
trabalhou como gari, varrendo ruas de uma cidade universitária durante um longo
período e viveu na pele a invisibilidade: constatou que as pessoas passavam por
ele sem olhar, falavam entre si de assuntos particulares sem se dar conta que
ele estava ali, não lhe desejavam bom dia, esbarravam nele e não lhe pediam
desculpas. Um apresentador de um jornal da TV há alguns anos atrás também, com
um microfone aberto acidentalmente, zombou em rede nacional dos votos de feliz
natal de um grupo de garis. Invisíveis não recebem votos, nem de bom dia e seus
votos são também desqualificados.
No mês de julho comemoramos
o dia de um outro grupo de invisibilizadas. Dia 25 de julho é o Dia da Mulher Negra
Latino Americana e Caribenha. Você já ouviu falar das escritoras Maria Firmina
dos Reis ou de Carolina Maria de Jesus? Conhece a deputada Antonieta de Barros
e a ministra Luiza Bairros? Já ouviu falar da musicista Chiquinha Gonzaga? E
das intelectuais Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez? Além das praias, o que
você sabe a respeito do Caribe? Por que precisamos falar sobre as mulheres da América
do Sul? Quais são nossas especificidades?
Eu gosto das
histórias de super-heróis, mas a vida real tem heróis e heroínas muito mais
interessantes e os poderes do mundo de lá, às vezes são limitações no mundo de
cá. Se lá ser invisível poupa os heróis dos tiros, aqui cria alvos – o número
de jovens negros que morre no nosso país são números de guerra. Se a invisibilidade
lá permite desorganizar os vilões, aqui os fortalece – as agressões contra as
mulheres negras são em número maior do que contra as mulheres não negras, ainda
são subnotificadas e no processo de denúncia as mulheres ainda sofrem maus
tratos no atendimento nas delegacias especializadas ou não. Se lá os invisíveis
podem ouvir tudo, aqui podem, mas isso não é uma vantagem, os assédios, as
palavras grosseiras não poupam os ouvidos dos invisíveis, principalmente das invisíveis.
Não serem vistos significa que também não são ouvidos – é quase um "poder”
duplo – você grita e ninguém te escuta. As empregadas domésticas, em sua
maioria mulheres negras, não tinham direitos trabalhistas até muito
recentemente. Muito provavelmente
também, você ainda não reparou como temos, apesar de todas as dificuldades,
mulheres negras cientistas, juízas, políticas, professoras, engenheiras,
matemáticas. E a pequena presença delas não é um exemplo de meritocracia
individual de cada uma, mas a confirmação de que temos problemas na nossa
sociedade, que impede sistematicamente o acesso de grupos a posições de maior
prestigio e influencia.
Para anular os
poderes do Super Homem a kriptonita faz seu papel. Para anular o manto da
invisibilidade, o papel é da informação e do conhecimento. Não é a toa que nos
governos antidemocráticos e autoritários a repressão a uma educação libertadora
e as noticias falsas prosperam. O DLNews - com o Coletivo Mulheres na Política e o
apoio do NUPE - Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão da UNESP - traz sua
preciosa colaboração apresentando nos próximos dias informações sobre mulheres
negras brasileiras contribuindo para que
sejam um pouco mais conhecidas entre nós. Como estamos no mundo real, temos que tecer juntos com informações, conhecimento e combate
ostensivo ao preconceito, um manto de visibilidade que possa cobrir de maneira
equânime e justa a todos nós.