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Juliano Monteiro Medino, de 39 anos, faz atendimento na Bolívia
Foto por: Arquivo pessoal
Juliano Monteiro Medino, de 39 anos, faz atendimento na Bolívia

Ex-morador da região relata onda de violência, pânico e saques na Bolívia

Por: Da Redação
11/11/2019 às 16:30
Cidades

Com renúncia de Evo Morales, no domingo (10), tensão aumenta na Bolívia e brasileiros no país relatam medo, insegurança e incerteza.


Estudantes brasileiros se sentem encurralados na Bolívia entre a decisão de enfrentar uma das greves mais acirradas já enfrentadas pelo país ou deixar para trás o sonho de se formar em medicina,  retornando ao Brasil sem o diploma. Em meio a confrontos violentos, que já provocaram a morte de ao menos duas pessoas e deixaram 170 pessoas feridas, brasileiros temem pelas próprias vidas.

É nessa situação que se vê o estudante de medicina Juliano Monteiro Medino, de 39 anos. Ex-morador de Santa Fé do Sul, Juliano estudou em Rio Preto antes de se mudar para Santa Cruz de La Sierra, em 2017, para estudar medicina na Universidade Privada Domingo Savio (UPDS). Sem aula há 20 dias, ele conta que viu a situação piorar consideravelmente depois da renúncia de Morales. 

"Até ficamos felizes com o anúncio porque achamos que a greve ia acabar e tudo ia voltar ao normal. Mas a situação piorou e começaram os saques. A gente sente que a situação está tomando outra proporção. Os ânimos estão cada vez mais acirrados. É uma mistura de muitos tipos de sentimento como medo, insegurança, insatisfação, raiva e revolta”, falou o estudante. 

Juliano diz que vive em um prédio de oito andares e que tem 107 apartamentos. Pelo menos 70% dos moradores são brasileiros. Eles se unem para tentar se confortar e manter a expectativa de que a greve chegue ao fim o mais rápido possível, mas que a pressão psicológica é grande. 

"Você não sabe o que fazer, o que vai acontecer com a sua vida e vira uma pressão psicológica muito grande. Já surtei aqui dentro, já chorei, já desabafei com os colegas que moram no mesmo prédio. A gente desabafa, conversa, se apoia.  Um tenta acalmar o outro e esperar tudo passar. Mas estamos todos na mesma situação e no mesmo nível de perturbação”, falou o estudante. 

A sensação, de acordo com Juliano, além de todo o medo e insegurança, é de desassistência por parte da universidade e do cônsul brasileiro. "Pedimos para a universidade nos liberar e usar as plataformas virtuais para aplicar as provas, mas não fomos atendidos. Na primeira mensagem que nós trocamos com o cônsul, eles disseram que, como servidores do consulado brasileiro, estão na mesma situação que nós, ou seja, perdidos. Você se sente completamente sozinho porque não tem ninguém com você aqui pelo Brasil, por parte do governo”, disse. 

Juliano contou que eles se sentem pressionados e estão tentando resistir até a greve chegar ao fim, a rotina voltar ao normal e as aulas serem retomadas, mas a sensação de insegurança os leva ao limite.  

"Cada pessoa que resolveu vir para cá (Bolívia) estudar medicina mudou muita coisa na sua vida no Brasil. Mudou vida financeira, deixou família, amigos, namorada. Deixou muita coisa importante para trás para tomar a decisão de sair do Brasil para ir para outro país completamente diferente, outro mundo e outra cultura completamente avessa à nossa. Então é bem difícil narrar essa sensação que dá neste momento aqui”, falou.

Renúncia de Morales e falsa sensação de alívio
O estudante contou que foi gigantesca a movimentação no momento em que o anúncio da renúncia de Evo Morales era transmitido em todos os canais de televisão, na tarde de domingo.  As ruas que estavam silenciosas e vazias foram tomadas pela população que começou a sair das casas. 

Juliano disse também que o barulho era intenso. Uma mistura de gritos, fogos e músicas. Os comércios, que estavam fechados por conta da greve, foram abertos.

"Todas as redes foram interrompidas para o pronunciamento dele. A gente estava assistindo naquele momento e foi uma gritaria geral. Até onde o seu ouvido alcançava você ouvia aquela gritaria. Foguete, muito foguete. A gente saiu na janela e viu todo mundo indo para rua e aquela barulheira, o povo gritando. Músicas em volume alto de adoração a pátria, enaltecendo a pátria. As portas dos comércios que estavam fechadas foram se abrindo. As pessoas foram saindo, uma movimentação atípica, muito atípica, muita gente saindo e gritando ‘Bolívia Livre’, ‘Liberdade Bolívia’, foi emocionante ver a reação do povo”, falou o estudante. 

Até os estudantes foram contagiados com a alegria, que fez eles sentirem alívio e a falsa sensação de tudo tinha chegado ao fim, mas perceberam rápido que não seria bem assim.

"Nós também ficamos felizes porque achamos que a greve ia acabar com a renúncia e tudo ia voltar ao normal, mas, ao contrário, se intensificou. A insegurança aumentou e foi aí que começaram os saques. Por enquanto estão acontecendo nos bairros, mas a gente vê que está aumentando. Os ânimos estão cada vez mais alterados”, disse Juliano.

Noite de inferno 
O estudante disse que a primeira noite após a renúncia de Morales, que aconteceu na tarde de domingo (10), foi de terror. A proporção das manifestações atingiu um novo patamar com saques a lojas e casas, além de muito barulho de tiros para o alto, fogos, rojões e gritaria.

"A gente viu nessa noite (madrugada de domingo 10) o tempo inteiro as pessoas mandando mensagens pelo Facebook pedindo para mandar polícia para o bairro que a gente mora porque estão saqueando. Estão entrando nas lojas, roubando as casas. Isso aqui é insano”, falou.

Juliano explicou que tem se acostumado aos poucos com a movimentação, mas ainda se sente assustado. "São grupos bem organizados, do comitê cívico. Eles são os únicos que podem andar de carro. Aí saem de caminhonetes e caminhões lotados de gente para apoiar nos pontos onde há bloqueios. Eles passam e quando chegam é muito barulho. Fazem questão de mostrar que a cidade está dominada e está tudo sob o controle deles. É assustador e perturbador. Eu não dormia nas primeiras noites, acordava muito assustado e com a sensação de que alguma coisa ia acontecer. Depois você vai se acostumando, aquilo vai se tornando normal na sua rotina, vai fazendo parte de você. É muito estranho, mas você tem que se adaptar”. 

Com paus, pedras e rojões
Para manter o controle, os grupos de liderança do movimento contrário ao governo construíram barricadas que impedem a movimentação e circulação de carros, motos e bicicletas, segundo o estudante. Para manter, as famílias se revezam em turno. A predominância são os homens jovens, mas até as crianças participam. 

"A gente vê que eles estão com sangue na veia e estão dispostos a tudo. Você quase não sai de casa porque você não sabe quem você pode encontrar. Ouço os colegas bolivianos da faculdade e fico espantado com o que eles comentam. Você percebe que são pessoas comuns que estão muito dispostas a brigar mesmo. Elas saem e caminham muitos quilômetros para manter o bloqueio nas ruas, com bandeiras amarradas nas costas, máscaras e pedaços de paus”, falou o estudante. 

Para se proteger, os estudantes evitam sair de casa. Apenas vão ao mercado e retornam para casa. 

"São famílias inteiras com crianças na frente das casas com pedras, pneus, arama farpado cercando as ruas e não deixando ninguém passar. Dificultando o trânsito de bicicletas, motos, carros e pessoas... é bem diferente. Nós brasileiros não temos essa cultura e não estamos acostumados com isso. Para nós é muito diferente”, disse.

Aumento dos presos e falta de alimentos
Um dos fatores que mais tem preocupado os estudantes é a inflação. De acordo com Juliano, os preços dos produtos estão subindo desenfreadamente, principalmente dos alimentos básicos, como pães, por exemplo. Falta comida nas gôndolas dos mercados que estão com horários de funcionamento racionado. 

Juliano exemplificou com o preço do gás de cozinha. Segundo ele, antes da greve uma determinada quantidade de gás custava 20 bolivianos e 50 centavos. Pela mesma quantidade foi cobrado 130 bolivianos na manhã desta segunda-feira (11).

"Foge do controle do que a gente tem para sobreviver aqui, como estrangeiros e estudantes de medicina. Vejo que tem pessoas com condições financeiras inferiores que estão bem preocupadas, economizando o que comer porque está tudo muito caro”, falou. 

O estudante falou ainda sobre a dificuldade para comprar produtos e alimentos para atenderem a necessidade básicos da rotina, como carnes e pães, por exemplo. "As prateleiras estão bem vazias, principalmente as de consumo mais diários, como leite, queijos, iogurtes. Para carnes, pães... são filas desumanas, pessoas brigando se xingando e se empurrando para conseguir pegar o pouco de pão que sai. Com o tempo reduzido, o mercado está sempre lotado, filas quilométricas, tudo muito desconfortável”, finaliza.

Medino com os colegas da turma de medicina
Foto por: Arquivo pessoal
Medino com os colegas da turma de medicina








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