Sobre vozes e piscadas
Uma amiga, falecida precocemente, Maruska Rameck, convidou-me para
ser sujeito de sua pesquisa. Eu a conheci na PUC-SP, quando fazia mestrado e
ela, doutorado. Fonoaudióloga, estudava a voz em mulheres com cargo de poder
comparada com a de profissionais liberais e donas-de-casa.
Quando finalizou sua tese, me confessou que, de todas as
participantes de sua pesquisa, eu era a segunda com voz de menor poder. É claro
que este dado é (era) confidencial, pois, quando fazemos pesquisas, o anonimato
dos participantes é mantido. Sua tese conclui que a mulher, conforme exercia e
conquistava cargos de poder, engrossava a voz para poder se equiparar aos
homens e ganhar credibilidade. Corro o risco de estar simplificando os
resultados da pesquisa, mas este texto é de memórias e ficou em mim essa
lembrança, sem maiores preocupações científicas.
Essa revelação do (des)poder de minha voz causou em minha amiga a
seguinte resposta quando viu que fiquei, de certa forma, decepcionada: "Lília,
conquiste seu espaço, mantendo sua voz, como é, seu jeito, como é. Não é a
masculinização de sua voz que irá te empoderar”.
Passaram-se mais de 20 anos desde o fato aqui relatado. Observo
minha voz ora fragilizada pelas intempéries da vida, ora fortalecida, ora
grossa, ora rude, ora doce, ora melódica: longe de revelar qualquer distúrbio
emocional, o que percebi é que, na trajetória da vida, minha voz me acompanha.
A cada piscada da vida, perco a voz, enrouqueço, grito, canto, fico afônica,
não consigo falar alto, falo alto demais. E entre idas e vindas, vou me
compondo enquanto mulher em constante formação e transformação até o dia em que
parar de piscar, como nos lembrou Emília, em suas Memórias: essa sim, mulher
porreta, de voz forte, mesmo sendo feita de retalhos costurados.
Chico Parapoucos
Longe de querer discutir o protesto feminista em relação à música
"Com açúcar, com afeto” de Chico Buarque, o que me chamou a atenção foi a
atitude dele mesmo. As feministas protestaram e Chico simplesmente parou de
cantar. Não quis discutir pois, segundo ele, as feministas têm razão: "outra
época, outros tempos, hoje não faz mais sentido”. Em tempos em que se discute
fenômenos de Manterrupting e mansplaining, ver um homem se posicionar como Chico
é acalentador. As mulheres gritam há séculos, as conquistas caminham a passos
apertados. Continuemos gritando até que outros tantos Chicos nos escutem e
parem simplesmente de cantar o que não precisa.
O leitor
Tem filmes que nos marcam. "O leitor” (2008) foi um deles. Com
vários panos de fundo, o nazismo, a história de amor, os traumas não superados,
o ponto central do filme é o analfabetismo. O analfabetismo revelado pela
narrativa a partir do olhar do vidente que olha, mas não enxerga. A auto-condenação
pela vergonha de se revelar uma não-leitora em um mundo de letrados. A exclusão
e a violência silenciadas e minimizadas em um mundo poluído com letras demais e
gente que sabe lê-las de menos. Narremos. Contemos. Recontemos. Sejamos todas
"ouvidos” para termos nossas narrativas escutadas. Como disse nosso querido
Jorge Bergoglio: é "a escuta que permite encontrar o gesto e a palavra oportuna
que nos desinstala da sempre e mais tranquila condição de espectador”.
Lília Santos Abreu-Tardelli é filha de uma mulher incrível, mãe da
Beatriz e do Mateus, professora da UNESP e membro da Comissão Justiça e Paz da
Diocese de São José do Rio Preto.