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Professora da UNESP e membro da Comissão Justiça e Paz da Diocese de São José do Rio
Foto por: Arquivo Pessoal
Professora da UNESP e membro da Comissão Justiça e Paz da Diocese de São José do Rio

Fragmentos

Por: Lília Santos Abreu-Tardelli
08/03/2022 às 13:00
Artigos

Sobre vozes e piscadas


Uma amiga, falecida precocemente, Maruska Rameck, convidou-me para ser sujeito de sua pesquisa. Eu a conheci na PUC-SP, quando fazia mestrado e ela, doutorado. Fonoaudióloga, estudava a voz em mulheres com cargo de poder comparada com a de profissionais liberais e donas-de-casa.

Quando finalizou sua tese, me confessou que, de todas as participantes de sua pesquisa, eu era a segunda com voz de menor poder. É claro que este dado é (era) confidencial, pois, quando fazemos pesquisas, o anonimato dos participantes é mantido. Sua tese conclui que a mulher, conforme exercia e conquistava cargos de poder, engrossava a voz para poder se equiparar aos homens e ganhar credibilidade. Corro o risco de estar simplificando os resultados da pesquisa, mas este texto é de memórias e ficou em mim essa lembrança, sem maiores preocupações científicas.

Essa revelação do (des)poder de minha voz causou em minha amiga a seguinte resposta quando viu que fiquei, de certa forma, decepcionada: "Lília, conquiste seu espaço, mantendo sua voz, como é, seu jeito, como é. Não é a masculinização de sua voz que irá te empoderar”.

Passaram-se mais de 20 anos desde o fato aqui relatado. Observo minha voz ora fragilizada pelas intempéries da vida, ora fortalecida, ora grossa, ora rude, ora doce, ora melódica: longe de revelar qualquer distúrbio emocional, o que percebi é que, na trajetória da vida, minha voz me acompanha. A cada piscada da vida, perco a voz, enrouqueço, grito, canto, fico afônica, não consigo falar alto, falo alto demais. E entre idas e vindas, vou me compondo enquanto mulher em constante formação e transformação até o dia em que parar de piscar, como nos lembrou Emília, em suas Memórias: essa sim, mulher porreta, de voz forte, mesmo sendo feita de retalhos costurados.

 

Chico Parapoucos                                                       

Longe de querer discutir o protesto feminista em relação à música "Com açúcar, com afeto” de Chico Buarque, o que me chamou a atenção foi a atitude dele mesmo. As feministas protestaram e Chico simplesmente parou de cantar. Não quis discutir pois, segundo ele, as feministas têm razão: "outra época, outros tempos, hoje não faz mais sentido”. Em tempos em que se discute fenômenos de Manterrupting e mansplaining, ver um homem se posicionar como Chico é acalentador. As mulheres gritam há séculos, as conquistas caminham a passos apertados. Continuemos gritando até que outros tantos Chicos nos escutem e parem simplesmente de cantar o que não precisa.

 

O leitor

Tem filmes que nos marcam. "O leitor” (2008) foi um deles. Com vários panos de fundo, o nazismo, a história de amor, os traumas não superados, o ponto central do filme é o analfabetismo. O analfabetismo revelado pela narrativa a partir do olhar do vidente que olha, mas não enxerga. A auto-condenação pela vergonha de se revelar uma não-leitora em um mundo de letrados. A exclusão e a violência silenciadas e minimizadas em um mundo poluído com letras demais e gente que sabe lê-las de menos. Narremos. Contemos. Recontemos. Sejamos todas "ouvidos” para termos nossas narrativas escutadas. Como disse nosso querido Jorge Bergoglio: é "a escuta que permite encontrar o gesto e a palavra oportuna que nos desinstala da sempre e mais tranquila condição de espectador”.

 

Lília Santos Abreu-Tardelli é filha de uma mulher incrível, mãe da Beatriz e do Mateus, professora da UNESP e membro da Comissão Justiça e Paz da Diocese de São José do Rio Preto.







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