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Trans Mulher Lésbica Branca, com todos os privilégios que possam vir disso. Formada em química, pós-graduada, professora da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” e coordenadora do Projeto VIdAS (Valorizando Identidades e Acolhendo Sexualidades).
Foto por: Arquivo Pessoal
Trans Mulher Lésbica Branca, com todos os privilégios que possam vir disso. Formada em química, pós-graduada, professora da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” e coordenadora do Projeto VIdAS (Valorizando Identidades e Acolhendo Sexualidades).

Espelho da minha Mãe

Por: Marcela Marques
08/03/2022 às 09:48
Artigos

Uma coisa que sempre ocasionou sofrimento em minha vida foi imaginar o que minha Mãe e a Mãe de minha Mãe e assim por diante sofreram em função do patriarcado político-religioso.


Lembro-me da minha avó contar que sua Mãe foi uma indígena pega à laço por meu bisavô branco, uma cena que, para mim, é muito dolorosa por imaginar o sofrimento da Mulher, que deixa de ser Livre para ser estuprada repedidas vezes por um "ser” superior. Minha Mãe, na juventude, sempre teve muita vitalidade, força, entusiasmo e esperança, e confesso que era uma Mulher ousada, e se tivesse a oportunidade, com certeza seria uma feminista da época (idos dos anos 60 do século XX). Ela se casou tarde para a época, mas da forma mais romântica que um casal cis-hétero-normativo-branco poderia fazê-lo, com direito a tudo que uma Mulher doutrinada pela ideologia patriarcal-político-religiosa sonha: véu, grinalda, amor além dos limites, filho e na sequência, traição e desespero. Muito decidida, se separou na sequência da traição sofrida pelo seu grande amor e voltou a morar com a minha avó com toda a recepção que se daria à época a uma bastarda ou "Mulher da vida”. Separação (na época desquite) era encarada assim. Foi condenada a ser uma pária dentro e fora da família. Se sentindo totalmente desprotegida e vítima de uma sociedade primitiva, decidiu "encontrar” marido e para isso tinha toda uma assessoria familiar para "desencalhá-la” juntamente com a criança. Foi nesse momento que conheceu meu pai, para o qual, primeiramente toda família, e depois ela, decidiram que era o que dava para arranjar.

 

Continuou vivendo toda a misoginia promovida pela ideologia patriarcal político-religiosa, comeu o pão que o homem-cis-hétero-normativo-branco amassou, sofreu, deu à luz ao que seria uma esperança, mas a pressão misógina promovida pelo meu pai, a "família”, e toda a sociedade foi muito forte, e na sequência quando grávida do meu terceiro irmão, sofreu tanto, que o bebê nasceu prematuro e naquele tempo (anos 60 do século XX) sem chance de vida. Isso a destruiu. A Mulher que antes do seu primeiro casamento era cheia de vitalidade, força, entusiasmo e esperança deu lugar à uma Mulher amarga, desconfiada, e autodestrutiva. E lá veio eu, rapa do tacho, mais uma tentativa de mudar o relacionamento, nasci numa época próspera, e tenho certeza que minha Mãe sentiu naquele momento um pouco de esperança, talvez mudanças para melhor. Houve bonança, mas durou pouco. Na sequência a "família” a "enquadrou” novamente e daí a autodestruição voltou com tudo.

 

Viveu até seus 81 anos sempre lutando, mas sempre perdendo, pois o Brasil e o mundo não mudaram! "Mulher tem seu papel de escrava, de alvo de opressão, e deve cumpri-lo!” Ela cumpriu. "Se quiser bater em alguém para afogar suas mágoas, bata numa Mulher!” Bateram muito nela. Choro muito por pensar em tudo que ela passou. E sei que, o que minha avó passou foi pior, e sua ascendência pior e pior. Hoje, eu sofro com a mesma intensidade, com a mesma ideologia, com a mesma sociedade, com a mesma família, afinal, somos Mulheres! Sou o espelho da minha Mãe! O que desejo e luto para isso é que nossas futuras Mulheres possam, UM DIA, desfrutar a Liberdade. Ainda não chegou nossa vez, mas há de chegar!

 

Marcela Marques é Trans Mulher Lésbica Branca, com todos os privilégios que possam vir disso. Formada em química, pós-graduada, professora da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho” e coordenadora do Projeto VIdAS (Valorizando Identidades e Acolhendo Sexualidades).

 







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