Quando penso na minha vivência com a violência, a primeira coisa que me vem à mente é que meu entendimento de violência foi tardio e construído após a minha vida adulta.
Eu sou uma mulher
negra e periférica, de família pobre e cristã, me criei em berço evangélico
onde por muito tempo meu conhecimento de mundo, de certo e errado era baseado
no que ali me foi ensinado, e reforçado pela voz de minha família, que
partilhava dessa mesma vivência.
Desde muito nova
presenciei situações de violência em meu lar, meu pai era alcoólatra e viciado,
minha mãe cristã, e apesar dos episódios de agressão física vividas nessa
relação, acreditava que seu casamento exigia sua paciência e oração, perdão e
amor.
Uma frase que
acompanhou minha família por muitos anos foi "Deus tem um plano na vida do seu
pai” e essa ideia romântica de fé era encorajada pelas lideranças da igreja que
frequentamos, ano após ano, cientes de todo contexto familiar da minha casa,
incentivaram que minha mãe tivesse fé, fosse paciente, que Deus a honraria e a
toda a nossa família.
Posteriormente, na
minha adolescência iniciei um namoro baseado nos parâmetros cristãos, um rapaz
da mesma fé, com a aprovação do meu pastor, líderes de jovens e meus pais.
Nessa relação vivi conflitos emocionais que não estava preparada, fui acometida
por uma dependência e medo da solidão, fui diminuída e afastada dos meus
amigos, para satisfazer as exigências de um namoro que todos acreditavam que
era o certo para mim, e o resultado dessa relação foi um envolvimento sexual
que me fez sentir ainda mais culpada.
Nosso relacionamento
durou poucos meses, e deixou marcas tão profundas no meu corpo e na minha alma
que demorei muito tempo para entender suas raízes. Na época, busquei amparo nas
minhas lideranças, que apesar de me perdoarem, me fizeram sentir responsável
pelo fracasso do relacionamento. Foi só depois de muitos anos que eu entendi
que tinha sofrido um estupro, uma relação sexual não consentida.
Dados do 14° Anuário
Brasileiro de Segurança Pública mostram 266.310 registros de lesão corporal
dolosa contra mulheres decorrente de violência doméstica e familiar, o que
representa a média de 729 agressões diárias, considerando que a maioria das
pessoas que sofrem essas violências nunca chegam a denunciar. Foram 648 vítimas
de feminicídio no Brasil durante o primeiro semestre de 2020, uma média de
quatro mulheres por dia.
Ao longo de anos fui
construindo meu entendimento social como mulher, e percebi que a fé cristã pode
trazer conforto espiritual e esperança para as pessoas, mas a culpa cristã é
injusta com todos, mas principalmente com as mulheres. A culpa traz uma
perspectiva patriarcal e opressora, e isso pode ser muito perigoso porque
incentiva mulheres a permanecerem em espaços que podem as anular ou colocar em
risco sua integridade e sua vida.
É hora de toda
sociedade se responsabilizar por essas mulheres e seus lares, a desinformação
tem um preço alto, e custa a vida de milhares de mulheres no nosso país.
Ariane Santos é uma mulher negra, bisseexual de
27 anos, acadêmica de Administração, PROUNIsta e pesquisadora, militante dos
movimentos sociais de raça, classe e gênero. Atualmente é Conselheira no CMA
Conselho Municipal Afro Brasileiro de São José do Rio Preto, onde atua como
Secretária executiva.