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Transferência de tecnologia pode virar entrave para Doria em ’guerra das vacinas’

Por: FOLHAPRESS - Ana Bottallo
22/10/2020 às 18:47
Brasil e Mundo

Contratos com farmacêuticas não garantem inovação, que depende de investimentos em fábricas


Em meio ao acirramento da "guerra das vacinas" entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o tucano terá de contornar mais um obstáculo para que a vacina produzida pelo Instituto Butantan em consórcio com a farmacêutica chinesa Sinovac chegue à população: a transferência de tecnologia, que pode levar anos.

Enquanto países buscaram desenvolver suas próprias vacinas contra a Covid-19, o Brasil firmou acordos para obter vacinas desenvolvidas em outros países, com transferência de tecnologia entre a Universidade de Oxford/AstraZeneca e a Fiocruz e entre a empresa Sinovac e o Instituto Butantan.

Na última terça-feira, o Ministério da Saúde (MS) firmou um acordo com o governo de SP para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac, a vacina da Sinovac, a serem produzidas até dezembro, imediatamente atacado por Bolsonaro.

O cronograma proposto pelo governo paulista, entretanto, contém alguns poréns: embora o Butantan afirme que vai entregar as doses até o início de 2021, esse primeiro lote deve ser apenas envasado e rotulado no país, a partir das vacinas prontas vindas da China —a origem chinesa do imunizante virou alvo do presidente, empenhado em alinhar-se do lado americano na disputa geopolítica e econômica que Washington trava com Pequim e que, no Brasil, já alvejou os contratos do 5G.

A absorção completa da tecnologia da vacina pelo Butantan, segundo modelos atuais, pode demorar até dez anos.

Seguindo o modelo de produção de PDPs (parcerias de desenvolvimento produtivo), nenhuma transferência de tecnologia de vacina incluída no Programa Nacional de Imunização (PNI), à exceção da vacina da gripe, foi concluída. Esta, porém, levou 14 anos.

"Quando entrei [na diretoria], minha primeira ação foi finalizar a fábrica da vacina. Os projetos das outras fábricas estavam em andamento quando saí do instituto, mas nunca foram terminados”, afirma Jorge Kalil, ex-diretor do Instituto Butantan e pesquisador do Incor.

Até 2012, o Ministério da Saúde firmava convênios para compra de vacinas e financiava equipamentos nos laboratórios nacionais, sendo os principais deles responsáveis por cerca de 75% das vacinas para o PNI, o Butantan e Bio-Manguinhos (Fiocruz). Desde então, esses convênios passaram a se chamar PDPs e, além da compra das doses, foram incluídos também recursos para construção —ou readequação— das fábricas, incorporação da tecnologia e treinamento.

Isso significa que a farmacêutica se compromete a treinar e a capacitar a equipe nacional. Em contrapartida, os laboratórios mantêm um acordo de, no mínimo, quatro anos de compra de doses, sendo que no primeiro ano fazem apenas envase e rotulagem —o que deve acontecer com a vacina da Sinovac no Butantan.

Outro ganho para a empresa estrangeira é a escala, uma vez que as fábricas têm capacidade para produzir e exportar. Para a vacina da Covid-19, essa será uma vantagem, uma vez que a primeira vacina que tiver sucesso nos ensaios clínicos poderá ser vendida no mercado global.

"É um acordo muito favorável para as farmacêuticas. Se a transferência de tecnologia demora muito para concluir, elas têm a vantagem quase total do mercado”, afirma Kalil.

Para o pesquisador, o país poderia ganhar com a tecnologia adquirida nas últimas duas décadas e investir em pesquisa e desenvolvimento, mas isso não ocorreu.

Alguns centros fabris já são habilitados para envase e rotulagem, mas a produção em si, que inclui culturas em células de vírus ou bactérias, necessita instalações especiais. Para a Coronavac, o Butantan deve usar o espaço preexistente da fábrica de hemoderivados.

Além de uma nova tecnologia, outra vantagem das PDPs é ampliar a demanda e diminuir os custos, uma vez que prevê a renegociação dos preços unitários das doses. Em poucos anos, o governo pode passar a comprar apenas do laboratório nacional, sem precisar importar.

Na prática, porém, isso não acontece. Mesmo após a incorporação da vacina da gripe, o preço unitário da dose passou de R$ 8,44, em 2014, para R$ 15,12 em 2020. Em 2018, o MS contratou 60 milhões de doses da vacina, sendo 55 milhões produzidas no instituto e outras 5 milhões importadas, ao custo adicional de R$ 47,6 milhões.

Esta e outras questões levaram o Tribunal de Contas da União (TCU) a realizar, em 2014, uma auditoria em três fábricas de vacinas: Butantan, Bio-Manguinhos e Fundação Ezequiel Dias (Fiocruz de MG).

Segundo o TCU, o MS não realiza uma pesquisa das vacinas em desenvolvimento no país antes de firmar as PDPs e os reajustes de preços não ocorrem.

A assessoria de imprensa do Instituto Butantan informou que os valores dos contratos firmados com o MS são definidos em comum acordo e que "as definições, tanto de volumes quanto valores de doses, são renegociados anualmente, de acordo com as necessidades do próprio MS".

Dessa forma, muitas PDPs (incluindo para medicamentos) não são aceitas. Os projetos são apresentados primeiro à Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), para avaliar se a incorporação da tecnologia é válida, e aos órgãos de controle, que verificam a transparência no valor investido.

"Seguindo as leis de compra com verba pública no país, investir em tecnologia que não existe é extremamente arriscado. Por isso, o governo apresenta à Corregedoria Geral da União e ao TCU quais serão os ganhos do Brasil com aquela tecnologia”, explica Elize Massard da Fonseca, pesquisadora da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas que analisa transferências de tecnologia no país.

As PDPs foram criadas para absorver as tecnologias desenvolvidas fora do país e têm o mérito de diminuir os gastos com políticas de saúde pública. "Sem as PDPs, não compraríamos as vacinas e medicamentos ao preço que compramos. O Brasil é o único país da América Latina com capacidade de absorver essa produção em larga escala."

O Ministério da Saúde afirmou que as PDPs visam "ampliar o acesso da população a produtos estratégicos e diminuir a vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS), além de reduzir as dependências produtiva e tecnológica internacional." A pasta informou ter atualmente quatro PDPs com o Instituto Butantan (HPV, dTPA, hepatite A e anticorpos monoclonais, usados para tratamento de câncer) e uma com a Bio-manguinhos.

Ainda de acordo com o ministério, as PDPs são constituídas por quatro fases, sendo a transferência de tecnologia e aquisição do produto pelo MS a terceira fase, e o "tempo de vigência proposto varia conforme a complexidade tecnológica do processo."

"Referente ao processo de transferência de tecnologia, o Ministério da Saúde vem adotando, de forma sistemática, medidas de fortalecimento dos produtores públicos e de modernização do parque produtivo brasileiro de produtos e serviços estratégicos para o SUS, a exemplo do Programa para Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde (Procis), criado com o objetivo de melhorar a infraestrutura de produção e inovação em saúde."

Em relação aos prazos para transferência de tecnologia, o Butantan informou que as PDPs das vacinas do HPV (papilomavírus humano), dTPA (difteria, tétano e pertussis acelular) e hepatite A, mantidas pela pasta, tiveram prazo de vigência, inicialmente de cinco anos, ampliados para dez anos para finalização dos processos pelos laboratórios envolvidos. ​

No caso da vacina da Oxford, o acordo de transferência de tecnologia tem três pilares: "a adequação da fábrica, o controle de qualidade e a incorporação da tecnologia de vetor viral não replicante, algo inédito no país”, diz Fonseca. A vacina é feita a partir de um adenovírus de chimpanzé, o ChAdOx1, modificado e inativado.

O Instituto Butantan não divulga o acordo feito com a Sinovac; apenas diz se tratar de uma vacina de vírus inativado, uma tecnologia que o instituto já domina há anos. Em nota, o ministério da Saúde negou compromisso para compra de vacinas da Coronavac e reafirmou ter um protocolo de intenções para compra de uma possível vacina brasileira com o instituto.

Recentemente, o governo da Rússia anunciou aguardar registro da Sputnik V no Brasil em dezembro. Moscou tem acordos com o governo da Bahia e do Paraná para produção da vacina no país. A vacina russa não está, até agora, no cronograma divulgado pelo Ministério da Saúde na última quarta-feira (14).

PASSO A PASSO PARA SE OBTER UMA VACINA
Processo pode demorar mais de uma década; veja meios para encurtar cada etapa

Pesquisa pré-clínica
É toda aquela que acontece antes dos testes em humanos. Ela envolve a pesquisa, por exemplo, de como o patógenos agridem o organismo do hospedeiro e a busca por possíveis antígenos. Pode demorar vários anos até esse corpo de conhecimento ser sólido o suficiente

Para encurtar o prazo: é possível aproveitar o conhecimento adquirido sobre os vírus da Sars (síndrome respiratória aguda grave) e Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio), ambos coronavírus

Pesquisa clínica - Fase 1
O teste é feito com dezenas de seres humanos saudáveis. A ideia é ver se o fármaco é seguro e não causa efeitos colaterais. Essa fase de pesquisa pode demorar alguns meses. Muitos candidatos falham nesta etapa e também na etapa seguinte

Para encurtar o prazo: uma possibilidade é iniciar as fases subsequentes de estudos enquanto outras ainda estão em andamento. Para isso, deve haver acordo com as autoridades regulatórias

Pesquisa clínica - Fase 2
Com algumas centenas de voluntários deseja-se saber se o fármaco, além de seguro, tem chances de funcionar. No caso de uma vacina, a ideia é que sejam gerados anticorpos contra o patógeno (ainda resta saber se eles de fato imunizam)

Para encurtar o prazo: esta fase poderia ser praticamente suprimida

Pesquisa clínica - Fase 3
Com base nos resultados de segurança e de possível eficácia, milhares de pessoas são vacinadas e outras milhares recebem placebo (uma injeção que não contém o imunizante propriamente dito) para quantificar o potencial de imunização do candidato a vacina

Para encurtar o prazo: Às vezes demora para um candidato a vacina demonstrar capacidade de prevenir a infecção. Essa etapa pode ser especialmente veloz num cenário no qual uma população é muito suscetível e há uma pandemia em curso.

Construção de fábricas
Via de regra a construção da fábrica pode levar anos e só acontece após a aprovação da vacina, dado que ela pode se mostrar insegura ou ineficaz em alguma das etapas de pesquisa clínica, e a obra se tornar um investimento perdido

Para encurtar o prazo: Grandes indústrias e consórcios estão considerando a construção de fábricas em paralelo à realização dos ensaios clínicos, para que a resposta possa ser mais breve

Produção em larga escala
Produzir uma vacina requer equipamentos específicos e técnicas também específicas. Enquanto algumas vacinas são produzidas após a infecção de ovos de galinha com vírus, outras dependem da produção de antígenos por micro-organismos, por exemplo

Para encurtar o prazo: É possível iniciar a produção industrial da vacina antes mesmo de a eficácia ser comprovada. Sua liberação estaria condicionada à comprovação de eficácia ao menos parcial

Distribuição
Além de garantir a quantidade necessária para imunizar potencialmente toda a humanidade, é preciso ter meios para que ela consiga chegar aos diversos países

Para encurtar o prazo: A vacina pode começar a ser distribuída antes mesmo de que sua eficácia esteja totalmente comprovada, e pode ser empregada para imunizar profissionais de saúde e segurança, por exemplo

Fontes: Diego Moura Tanajura (Universidade Federal de Sergipe), NIH, Universidade Harvard, Universidade de Oxford







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