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Cacau Lopes

Médico e professor da Famerp


Que tempos são estes que estamos vivendo?

Por: Cacau Lopes
02/09/2019 às 10:51
Cacau Lopes

Em seu livro "O Fascismo Eterno” — fruto de uma Conferência, proferida na Universidade de Columbia, em 1995, para celebrar a libertação da Europa dos regimes fascistas — Umberto Eco (1932 – 2016) listou algumas características daquilo que denominou de Ur-Fascismo ou Fascismo Eterno.

A primeira característica é o culto à tradição, que busca impedir o avanço do saber, uma vez que a verdade já foi anunciada desde sempre e o que nos resta é interpretar dogmaticamente sua obscura mensagem. Como consequência deste tradicionalismo, o fascismo recusa a modernidade, sendo que o iluminismo e a razão são vistos como responsáveis pela depravação das artes, da família e dos costumes. 

Todo esse irracionalismo e a negação do conhecimento científico deságua, via de regra, no estímulo da ação meramente instrumental e irrefletida. Ou seja, não há lugar para o comportamento ético. Os fins sempre justificam os meios. Joseph Goebbels, ministro de propaganda de Hitler, declarava em alto e bom som que "quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola". A cultura, por açular o pensamento crítico, não é bem vista, e toda arte que provoca espanto e escancara a hipocrisia da sociedade é taxada de degenerada. 

O fascista opera por consenso e busca excluir, eliminar, matar tudo "aquilo que não é espelho”, que não reflete seu rosto macho, branco e a sua convicção de pertencer a uma raça escolhida.  Utilizando-se da exacerbação do medo do desconhecido, o primeiro apelo de um movimento fascista é contra os intrusos, contra os outros diferentes, os estrangeiros. Por isso, toda fascista é racista por definição.

Quase sempre, os movimentos fascistas nascem de uma frustração coletiva ou individual. Isso explica por que uma característica típica do fascismo tem sido o apelo às classes médias decadentes, desvalorizadas por alguma crise econômica ou política, assustadas pela pressão dos grupos subalternos. 

Esta frustração é sempre explicada através da existência de um inimigo externo real ou imaginário. A invocação aos símbolos pátrios é manipulada para se criar um sentimento coletivo de identidade nacional, na qual todas as diferenças e desigualdades são diluídas em nome de um nacionalismo "forçado” e falso. A partir deste expediente ideológico, surge a obsessão pela conspiração, geralmente externa, comunista, estimulando, dessa maneira, a insegurança, o receio em relação ao outro-diferente que deságua, invariavelmente, na xenofobia. 

O fascismo faz uso do sentimento de humilhação. Seus adeptos e seguidores devem sentir-se rebaixados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Buscando inspiração em "O Nome da Rosa”, eu diria que os adeptos do fascismo se sentem agredidos pela felicidade e o riso ostensivo daqueles que não pensam e não vivem como eles. Ao mesmo tempo, todo fascista que está no comando é elitista, reacionário e "aristocrático”. Ele despreza os "de baixo” e exerce uma necropolítica onde os pobres, os negros, as populações indígenas e LGBTQIs devem ser exterminadas. O poder fascista decide quem deve viver e quem deve morrer.

O fascismo necessita de heróis e de mitos. Nesta perspectiva, cada pessoa é educada para ser um soldado "a morrer pela pátria e viver sem razão”. O semideus fascista espera impacientemente pela morte. Porém, sua impaciência provoca sempre a morte dos outros, enquanto ele vocifera palavras de ordem contra o "inimigo” do interior de seu bunker protegido pelas trincheiras do poder familiar e de sangue. Suas armas são twitters, fakes e seus exércitos são drones, snipers. Eles, os comandantes fascistas, covardes que são, nunca vão para o front de batalha.

Todo fascista, utilizando um termo freudiano, é fálico. O pênis é seu objeto de desejo e de poder. Como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de jogar, transfere sua vontade de dominar a qualquer custo para questões sexuais. Esta é a razão do seu machismo, que implica o desdém pelas mulheres, que nascem em função de "fraquejadas”, e a condenação de relações sexuais que não se enquadram no modelo "papai-mamãe”.

O regime fascista, embora faça um apelo ao indivíduo-egoísta-meritocrático-narcisista, ele, no fundo, o despreza. Os seres humanos são vistos como povo, massa de manobra, ralé, pessoas que não agem, por isso necessitam e clamam por um comandante que venha "salvar a pátria”. Para que este regime possa sobreviver, eles insuflam uma guerra permanente contra os outros poderes constituídos, notadamente o legislativo e o judiciário. Uma das primeiras frases de Mussolini no Parlamento Italiano foi: — "Eu poderia ter transformado este salão surdo e cinza em um acampamento para meus regimentos”. 

Qualquer semelhança com a frase do filho do presidente, que quer ganhar do papai a embaixada dos EUA, alegando saber fritar hambúrguer, não é mera coincidência: — "Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a voz do povo, pode-se se sentir o cheiro do Ur-fascismo.

Os regimes fascistas odeiam a filosofia, as artes que não exaltam o poder, o ensino reflexivo e crítico. A todo momento as universidades e as instituições promotoras de cultura livre e plural estão sob sua mira.  A língua corrente neste regime é baseada em um léxico pobre e prescritivo, ao invés de polissêmico e reflexivo. As coisas da vida privada, íntimas, tornam-se objetos de gestão estatal, onde o autoproclamado Deus-deles está acima de tudo. 

Do ponto de vista da sua governamentalidade, os regimes fascistas despolitizam a questão social, tornando-a dependente da lógica econômica que impõe um enriquecimento dos mesmos através da espoliação e usura dos mais vulneráveis. O cidadão é trocado pelo consumidor, os direitos coletivos são individualizados, o mercado e a sociedade civil filantrópica passa a ocupar as funções do Estado, trocando o que era direito pela caridade. 

A participação ativa é substituída pela representação delegada, o princípio da solidariedade é trocado pelo individualismo (onde o outro passa a ser visto como inimigo competidor) e a ética pública se converte em moral privada. O Estado deixa de ser, assim, o espaço público ampliado, no qual os humanos podem expressar suas pluralidades, desejos e lutar por uma vida que realmente vale a pena ser vivida, para se transfigurar em um mero gestor dos nossos comportamentos. Não há tirania pior do que isto. 

O ser humano, se retirado das condições que lhe conferem humanidade — o fato de poder aparecer e ser levado em conta, uns aos outros, publicamente como portador de dignidade —, o que lhe resta, nesta condição de isolamento, é somente a violência oferecida como espetáculo nos coliseus das redes de internet e de TVs. Enquanto assistimos a esta barbárie, que transforma a vida em pontos do IBOPE, twitteiros de todas as laias e ideologias, a serviço dos deuses mercadológicos, disparam seus fakes como confeitos adocicados, para nos fazer crer que este é o nosso verdadeiro desejo: 
— Matem-se uns aos outros!

Este é o mandamento cravado a ferro e fogo pelos cavaleiros fascistas do apocalíptico que, fiéis aos dogmas dos seus minotauros fundamentalistas, nos apontam para um paraíso onde a vida na nossa Mãe-Gaia-Terra, com todos seus seres vivos e inanimados, protegidos por Pajés, Oxóssi, São Francisco, gnomos e outras pequenas criaturas das florestas, se transformam em mercadoria, em pasto de gado, soja e garimpo, em uma coisa coisificada. Triste fim. Encerrando o seu discurso, Umberto Eco nos lança um desafio: — "Liberdade e libertação são uma tarefa que não acaba nunca”. 






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