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Coronel Helena

Diretora de Polícia Comunitária e de Direitos Humanos da PM


Vidas Importam

Por: Coronel Helena
02/09/2019 às 10:25
Coronel Helena

Era madrugada de uma quinta feira, por volta de 2h.  Pelo rádio da viatura foi "paga” a ocorrência: "vizinhos relatam estar ouvindo gritos de mulher e choro ininterrupto de um bebê.” Viatura pelo local. Área central de São Paulo, região de cortiços e de difícil acesso. Estacionamos e nos deslocamos a pé pelas vielas. 

A cena: uma mulher jovem com um bebê de colo. O bebê apavorado. Ela com cortes superficiais e hematomas no rosto (o companheiro a agredira com socos e com um cabide de madeira). O motivo: ele queria ter "relações” e o bebê não parava de chorar.  Companheiro foragido. Vítima socorrida até o Pronto Socorro e, depois, liberada. Recusou-se veementemente a registrar o fato na delegacia, não queria que o marido fosse preso, afinal, ele "comprava leite para o bebê”. 

Questionada se existia algum parente ou amigo que pudesse abrigá-la por aquela noite ou até que o agressor fosse localizado, não havia ninguém. Com dor no coração deixamos que seguisse com sua vida, já que, naquela época, a lesão corporal leve era crime de ação pública condicionada à representação da ofendida.

Essa cena aconteceu em 1992, uma das primeiras ocorrências que atendi, ainda muito jovem e recém-formada.  Mas poderia ter sido ontem, ou será amanhã. De lá para cá, situações similares aconteceram aos montes. Algumas coisas melhoraram. Expandiram-se as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM). Em 2006 foi aprovada a lei 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, com o objetivo de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

A violência contra a mulher seja física, moral, patrimonial, psicológica ou sexual é uma das mais traumáticas e, pasmem, ocorre principalmente no contexto íntimo e é perpetrado por alguém conhecido da vítima. Estupro de vulnerável. Estupro marital. Não vejo crime maior do que aquele cometido por quem tem o dever legal e divino de proteger. Mas acontece a todo o momento e nos tira o sono em nosso berço esplêndido.

Os números são estarrecedores. Dados da 2ª edição da pesquisa "Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto Datafolha, apontam que 536 mulheres foram vítimas de agressão física a cada hora no último ano (4,7 milhões de mulheres) e 76,4% das mulheres que sofreram violência afirmaram que o agressor foi alguém conhecido. Essas estatísticas podem ser ainda piores, já que 52% das vítimas informaram não ter tomado nenhuma providência, como denunciar o agressor ou procurar ajuda. 

Contribui para essa expressiva subnotificação a cultura do silêncio, ainda muito presente em nossa sociedade, seja por vergonha, falta de apoio para por fim ao relacionamento abusivo, dependência econômica e/ou emocional do agressor. Some-se a isso a culpabilização da mulher pela violência sofrida, "por não se dar ao respeito”, expressão que, na visão de muitos, se traduz em diversos comportamentos, como usar roupas provocantes ou estar em locais "incompatíveis”.  E, por fim, ainda vigora a crença da não intervenção no que ocorre nas relações familiares e conjugais, o que leva a uma aceitação tácita da agressão.

Temos que acordar da letargia coletiva e assumir que mulheres são agredidas e mortas graças ao machismo, ao preconceito e ao desrespeito enraizados em nossas mentes, que não permitem o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos e de vontades! Rimos diante de "piadas” com conteúdo misógino. Criamos nossos meninos para vestir azul e esperar que uma mulher faça e sirva sua comida, lave e passe suas roupas. Subestimamos, vulgarizamos, ridicularizamos aquelas que ousam romper com os papeis sociais a elas destinados. Ainda! 

O combate e a prevenção da violência contra a mulher não podem ser tratados como questões exclusivas de polícia ou à luz da legislação penal, sob pena de sermos reativos e reducionistas. Ensinar meninos a não serem violentos e meninas a não se tornarem vítimas é fundamental para mudar comportamento de homens e mulheres no futuro. Criar estruturas para acolher, sensibilizar os agentes públicos, dar suporte material e psicológico às mulheres, responsabilizar e tratar os agressores é necessário para termos resultados no curto e médio prazo.

Em março deste ano a Polícia Militar lançou o aplicativo "SOS mulher”, gratuito e disponível para todos os celulares no estado de São Paulo. Trata-se de uma ferramenta de acionamento da Polícia Militar, destinada ao atendimento de pessoas que possuam medidas protetivas deferidas pelo Tribunal da Justiça de São Paulo (TJSP). Após o cadastro e a confirmação dos dados, o aplicativo poderá ser utilizado para agilizar o atendimento das ocorrências. Quando o botão dentro do aplicativo é pressionado por alguns segundos, uma ocorrência de Risco de Integridade Física é gerada automaticamente pelo Centro de Operações da Polícia Militar (COPOM). 

Através das coordenadas geográficas da pessoa que utilizar o aplicativo, será designada a viatura mais próxima do local para atender ao chamado. E temos o compromisso de trabalhar em um projeto de segurança pública, cidadania e responsabilidade social que envolve diversas ações, como a capacitação dos policiais militares em todo estado e a criação protocolos de atendimento e encaminhamento de ocorrências de violência doméstica e sexual. 

Também abrange a formatação de palestras que serão ministradas em comunidades e escolas, a realização de fóruns com os demais atores envolvidos nas políticas públicas de combate e prevenção a essa forma de violência e campanhas públicas para conscientizar, informar e educar. Não temos tempo de permanecer estarrecidos. Precisamos transformar nossa indignação em ação e dizer "sim, nos importamos”.






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