O Brasil, no campo do conhecimento jurídico, tem proporcionado que a imprensa vá para além dos fatos jornalísticos e se especializado cada vez mais no Direito, comunicando à sociedade conteúdos antes reservados à comunidade jurídica.
Quando digo isso não o faço –
de certa forma – a título elogioso, mas num tom crítico à judicialização de
questões que deveriam ser objeto de reflexões, debates e decisões nas arenas
políticas; bem verdade que, como efeito colateral dessa tendência à
judicialização exagerada, brota também a disseminação de discussões provocadas
pela imprensa sobre cada desses casos, o que qualifica a informação
jornalística de bom conteúdo e estimula a verdadeira cidadania.
Se de uma banda o Poder
Judiciário bem se explica, justificando que não é ele quem provoca essa
indesejável judicialização de questões de natureza política, de outro lado nós
– que vivemos nas comunidades jurídica e acadêmica – notamos que num passado
menos recente os magistrados seguiam a máxima: Não é dado ao Judiciário se
imiscuir no mérito administrativo.
Na obra The Judicialization
of Politics in Latin America, publicada por de Rachel Sieder, Line
Schjolden e Alan Angell em Nova York no ano de 2006, o capítulo capítulo
intitulado Constitutionalism, the expansion of Justice and the
Judicialization of Politics in Brazil, coube ao brasileiro Rogério Bastos
Arantes, que apontou 4 causas para o fenômeno dessa judicialização: (1) a
extensão dos direitos previstos na Constituição de 1988; (2) a pressão de
grupos de interesse na judicialização; (3) o papel dos grupos antagônicos no
cenário político (grupos da coalisão e grupos da oposição) e; (4) o modelo
constitucional, que atribuiria ao Poder Judiciário a tutela de interesses
coletivos e difusos. Nas palavras do autor: First, political
democracy was established in the 1980s followed by the approval of a new
constitution in 1988 that set out an extensive charter of rights. Second,
an increasingly greater number of interest groups within society are demanding
judicial solutions to collective conflicts. Third, the political system
is characterized by fragile and even minority coalitions supporting the
government of the day, while the opposition uses the judiciary to fight
government policies. Lastly, the constitutional model delegates to the
judiciary and to the Ministerio Publico (Public Ministry) the task of
protecting both individual rights and interests, as well as collective and
social rights.
De fato, a Constituição de
1988 é o que chamamos, dentro da comunidade jurídica, de uma constituição
analítica, não tão somente pela extensão de seu texto, mas porque nele foram
inseridas questões que chamamos de materialmente constitucionais e
outras formalmente (ou não materialmente) constitucionais; as
materialmente constitucionais são aquelas que simplesmente estabelecem os
direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos políticos, de cidadania
e nacionalidade, além de alguns direitos sociais, e a estrutura do Estado, destacando-se
sua forma (republicana), sistema (presidencialista), regime (democrático) e
separação entre os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Constituições
analíticas, como a nossa, acabam também trazendo ao seu texto temas que não são
de natureza constitucional e, por essa razão, são chamadas normas
formalmente constitucionais (como é o caso da jornada de trabalho semanal
de 44 horas, seguro desemprego e outros tantos previstos no artigo 7º).
Ao contrário, nas Sintéticas,
tal a Constituição dos Estados Unidos da América, somente questões materialmente
constitucionais compõe seu texto, ainda que esse texto não seja necessariamente
enxuto ou resumido; a Constituição Americana, traduzida para a língua
portuguesa, tem 7.099 palavras (isso sem contar suas 27 Emendas) e, portanto,
não é tão resumida...
As segunda e terceira questões
apontadas por Rogério Bastos Arantes (grupos de pressão social e grupos
políticos antagônicos) são evidentes na realidade política brasileira, porém
esse fenômeno acontece em qualquer nação democrática – inclusive nos Estados
Unidos – sem que lá se perceba e se tente justificar ou explicar a
judicialização que aqui acontece; semelhantemente, o quarto fenômeno que o
autor aponta (o papel constitucional atribuído pela Constituição ao Poder
Judiciário) não é diferente noutros países, tampouco naquela nação.
O que vem acontecendo no
Brasil nos tempos mais recentes – especialmente no Supremo Tribunal Federal – é
o rompimento com a tradição da própria Corte Constitucional de não se imiscuir para
além do Direito na direção ao campo das políticas públicas, de responsabilidade
exclusiva do Poder Executivo, e da ação política, própria das Casas do
Congresso Nacional; o estado de coisas que aqui ocorre não se deve portanto ao
modelo constitucional e, mesmo diante das pressões de grupos de pressão social
ou grupos políticos antagônicos (fenômeno que acontece em qualquer democracia,
como o dissemos), o que deveria o Poder Judiciário revisitar sua mais antiga tradição
e, em tempos modernos, voltar a se autoproclamar incompetente para julgar essas
outras questões que não lhe cabem, mas aos outros poderes, a fim de se
prestigiar o princípio constitucional da separação dos poderes: Artigo 2º
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
O que vem sendo adotado pelo
Supremo Tribunal Federal para invadir a esfera de atribuições dos outros
poderes é um abuso àquilo que os linguistas chamam intertextualidade, paratexto,
metatextualidade, hipertextualidade e arquitextualidade; é
o que Umberto Eco critica e chama de superinterpretação, algo que pode
(mas não deveria) se derivar do contraste entre a intentio auctoris, a intentio
operis e a intentio lectoris, quando se permite ao leitor alargar
sua margem de interpretação de um texto alheio, pondo de lado a intenção
pretendida pelo autor, quando comunicou um algo num seu texto. A esse exagero
hermenêutico, Eco chama interpretação paranoica e interpretação
suspeita; paranoica é aquela em que o leitor elucubra em busca dos motivos
misteriosos do autor, que vê por baixo de meu exemplo um segredo,
enquanto interpretação suspeita seria aquela de que padeceria a semiótica
hermética, na medida em que desconsidera o critério da economia e, no seu
lugar, supervaloriza as pistas deixadas no texto criando uma falsa
transitividade ou falácia hermética post hoc ergo ante hoc (o
que vem depois causa o que vem antes).
Umberto Eco exemplifica a tal
falácia hermética: um médico diagnosticar a soda, adicionada às distintas
espécies de bebidas alcoólicas, como sendo o elemento causador da cirrose
hepática em seus pacientes; tudo porque esse sofisma partira da premissa que
ela (a soda) teria sido o elemento comum em todos os casos de cirrose, sem que
se perceba que o elemento comum e verdadeiramente culpado – por outra e óbvia
causa – é o tão somente o álcool, com ou sem a mistura da inocente soda.
Esse foi o objeto de nossa
pesquisa em pós-doutoramento, pela nossa Unesp (campus rio-pretense), em que
defendíamos a presunção do estado de inocência e criticávamos a chamada execução
antecipada de pena adotada ao arrepio da norma constitucional (Artigo
5º. LVII. ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória) sustentando que, se a norma jurídica (lei ou
constituição) não se presta mais ao fim para a que foi originalmente concebida
e promulgada – e por isso mais mal que bem ela cause na gestão das coisas e
serviços do Poder Judiciário – ou ainda, em se considerando que a barreira,
para a adoção de políticas públicas mais sérias na prestação da jurisdição,
decorra de um aparato normativo fraco e ineficiente, que se discuta a
reformulação dessas regras normativas numa arena dotada de legitimidade
(detentora de mandato popular), de composição ampla e plural (594 parlamentares
de todos os extratos sociais) e de renovação periódica (quadrienal), mas não no
Judiciário.
Em reforço a essa tese, vale
lembrar que somente quando a lei for omissa, caberá ao juiz decidir o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito e, somente
em sua aplicação, ele buscará atender aos fins sociais a que essa lei se dirige
e às exigências do bem comum (Lei de Introdução às normas do Direito
Brasileiro).
Enquanto o Poder Judiciário –
que é o único dos três poderes não legitimado pela soberania popular –
exorbitar em seu papel de interpretação de normas constitucionais, permitindo-se
agir pela tal malfadada superinterpretação (Umberto Eco) de normas
abstratas da nossa Constituição e ao contrário de nossa tradição, o que veremos
é não só a judicialização da política e das políticas públicas, como também a
politização da jurisdição (o que é dos males o maior).