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José Vitor Rack

Escritor e roteirista


Lúcifer mandou um recado

Por: José Vitor Rack
06/01/2020 às 11:22
José Vitor Rack

Sou general que perdeu a maior batalha de todas. A guerra está perdida. E estou preso no mais baixo círculo dos infernos.

A minha verdade não é coisa de ser confessada assim, sem quê nem pra quê, em público. Eu sou ainda dominado por conceitos arcaicos de compostura e civilidade... Coisas que hoje em dia não fazem troça a mais ninguém. Desde que fui considerado um dissidente, um pária para o poder central, minha verdade tem aparecido bem pouco. Bem pontualmente. Muito embora eu não faça questão nenhuma de escondê-la. Sou o que sou.
 
Eu sou chamado de bode por alguns. Sou representado graficamente como um bode em diversas tradições. Chifres, seios, uma estrela na testa. Uma androginia zoófila que não me agrada. O bode me persegue. Minha única área de contato com esse animal é no campo figurativo. Eu me sinto um verdadeiro bode expiatório dos que acreditam na divindade.
 
É... Tudo é culpa minha.
 
Tudo que é julgado de forma negativa tem o dedo do demônio. O demônio é o senhor da guerra, é o desagregador das famílias, o disseminador de epidemias... Como se toda a luz não nos fosse visível apenas pela comparação, pelo contraste com a escuridão.
 
A luz e a escuridão. Só diferenciamos um do outro por podermos ver os dois. Sem escuridão a luz nos cegaria. A dualidade é essencial à condição humana. E eles não entendem isso. Eles ignoram a verdade do mundo em que tu os colocaste. Um serviço realmente muito do mal feito, inacabado. Criados, não sabem quem são. Não entendem que tudo é deles, sai deles, vem de dentro deles para povoar a realidade concreta.
 
Tu os fizeste livres, com a deliberação de serem donos de suas próprias jornadas neste mundo. Tu os colocaste como... Como se diz mesmo? A tua imagem e semelhança. Pois muito bem. Se a humanidade hipócrita e inconsciente dela mesma é o espelho da tua essência, devo dizer que tenho muitas dúvidas se ainda deveria ter por ti qualquer respeito. Me pergunto se pode ser válido um julgamento que toma por base o testemunho desta gente com quem convivo nos vales sombrios da Terra. Ora, não são responsáveis por nada! São príncipes perfeitos. Não admitem suas culpas em absolutamente nada que se passa com eles e com este mundo.
 
Eu, Lúcifer, o cão vermelho, sempre eu sou o responsável pelas mais vis condições humanas. Seria eu o responsável pela fome? Pelo frio? Pela desesperança? Pelo sangue encarnado que tinge o sagrado solo que eles pisam? Eu influencio, entorto mentes, deformo personalidades, encarno em seus corpos oleosos e repugnantes, fedendo a almíscar? É assim que me enxergam?
 
Sou eu quem faz os corpos se retorcerem nas sessões de exorcismo mundo afora? Sou eu quem corrompe? Acho profundamente injusta esta demanda. Não me sinto responsável pelas mazelas de teus filhos. São a tua imagem e semelhança! São deuses. Têm a ti dentro deles, não foi isto que inspiraste a quem concebeu as escrituras sagradas que eles recitam como mantras? Recitam mas não entendem.
 
Que culpa tenho eu das imensas fragilidades que tu planejastes para teus filhos? Sim, pois são frágeis. A fragilidade deles é assustadora. Um anjo caído tem poder tamanho? É uma ideia muito herética para ser considerada em tua presença. Prefiro não me defender nestas bases. Já que tu julgaste uma boa ideia iniciar por mim este juízo, espero que compreendas a minha dificuldade de aceitar minha culpa com relação aos teus filhos.
 
Não é correto me tomar como o mal do mundo. Meus ombros não são grandes o suficiente para suportar tamanha mentira.
 
Então sou inocente? Não. Nem culpado, nem inocente.
 
Eu estava preso, enjaulado. Estava mergulhado dentro de meus pensamentos e idiossincrasias. Tive tempo de pensar muito a esse respeito, muito embora não suspeitasse que a hora do juízo se aproximava. Agora ela chegou e eu tenho coisas a dizer. Será este o meu júri. Estes serão os meus acusadores. Ou defensores. Esta é a hora em que a verdade deve ser dita.
 
Sou da máquina. Dente da engrenagem. O que é a existência humana? Vocês já pararam para pensar? É uma doideira. Nasce chorando. Cresce. Fala. Escola. Descobrir o que fazer da vida. Passar no vestibular. Arrumar um emprego. Casar e ter filhos. Fingir felicidade. Aposentar. Netos. Doenças. Fim. Um ciclo eterno de dor, sofrimento, fingimentos e imposições sociais. Uma armadura pesada que oprime, machuca, assa a virilha, a alma. O homem aprende desde cedo que esta sequência que eu citei é o que se deve fazer para a vida fazer sentido. Toda a humanidade vive presa em rótulos, em etiquetas, em compartimentos, em uma máquina de julgamentos instantâneos e de sofrimento irrestrito, gratuito e democrático. E eu sou o julgado pelo mal do mundo? Serei eu culpado?
 
Vamos aos fatos: o homem rotula, julga, classifica. Injustamente. Sem sentir nenhuma empatia pela outra parte. Eu sei que todos aqui presentes me enxergam como um pária. Um verme que precisa ser expelido. Tenho na testa o carimbo do linchamento, da execração social. É esse o comportamento que se nota quando um estuprador é surrado pela população em praça pública. Investidos de razão, donos da moral e da virtude, senhores e senhoras de bem se armam de paus e pedras para triturar o agressor das carnes da moça. Afundam o crânio do bandido em sete lugares diferentes. Transformam a massa cinzenta dele em Pomarola. Em nome da moral cristã! Da justiça dos homens e do reino de Deus! Ah, mas que reino é esse? Esse é o reino que me julga covarde? São esses os que me atacam? Pelo contraste de meu comportamento comparado com o deles me sinto plenamente livre para gritar aos quatro cantos que NÃO SOU CULPADO.
 
O homem tem medo do que mais lhe atrai: o prazer. Eu não temo o prazer. Isto me condena? Meus desejos são como os de vocês. Me trazem angústia. Dor. Sofrimento. E prazer. Muito prazer. Eu sou como vocês. Eu sinto na pele a vontade de ser, de ter, de pegar, de possuir as coisas. Isto me é essencial. Se opõe a mim quem sufoca o desejo. Se tranca dentro de conceitos e dogmas, para de noite fazer escondido o que os livros bentos proíbem. Vocês vivem todos os seus desejos? Ou deixam de fazer coisas por medo das consequências externas? Vejam bem, ex-ter-nas. A condenação sempre vem de fora. Mora dentro da cabeça estúpida, pretensiosa do homem e de suas ilações. Só tece ilações ao alheio quem não se conhece.
 
Aí está. Facilitarei o trabalho de vocês, meus julgadores: estão liberados para me condenar os que se conhecem profundamente e, mesmo tendo este nível de autoconhecimento, julgam-se superiores a mim em termos básicos. Algum de vocês não sucumbe aos próprios desejos? Se um só de vocês for capaz de responder sim a esta pergunta, considerarei esta pessoa apta a me condenar. Abaixarei a cabeça para o golpe fatal. Com alegria.
 
Aceitam o desafio? Aceitam olhar para dentro de si mesmos e examinar com lupa tamanho acúmulo de lixo? Quem topa acordar para o fato de que é tão maldito quanto o Satanás que tanto condena? Quem tem forças para se sentir na lama comigo? Quem? Alguém se habilita? Não. Claro que não. Desnudar-se em público é coisa para quem sabe de si.
 
Eu estou aqui. Nu. Inteiro. Firme como o corpo de uma guitarra. Sou distorcido como um bom solo. Sou mais parecido com vocês do que vocês imaginavam. E isto é tão perturbador para mim quanto é para vocês. Me acreditem.






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