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Cacau Lopes

Médico e professor da Famerp


10 de dezembro foi o Dia Internacional dos Direitos Humanos

Por: Cacau Lopes
17/12/2019 às 14:48
Cacau Lopes

Como repensá-los e defendê-los diante do extermínio neoliberal e fascista das políticas públicas?

Em que pese a consagração de direitos em nossa Constituição, há uma constatação de que estamos vivendo, não só no Brasil, mas no mundo globalizado, hegemonizado pela ideologia neoliberal, uma crise entre direitos formais e sua efetiva concretização. Os seja, os Direitos Humanos, após sua Declaração Universal pela ONU (1948), estão imersos em uma crise de realização. A simples existência de Normas Constitucionais que consagrem Direitos Sociais de Cidadania não garante a sua consequente implementação no mundo dos fatos, pois direitos não são autorrealizáveis e demandam mobilização política para sua consubstanciação. Em uma lógica na qual a economia subordina a Política totalmente, todo o debate sobre a concepção dos direitos e as práticas de luta e de resistência encontram-se inibidas. Tudo se subordina à lógica econômica da "reserva do possível”.

A fundamentação filosófica da concepção liberal dos direitos se dá por intermédio das Teorias Jusnaturalistas, do Contrato Social (Rousseau, 1712 - 1775) e das interpretações kantianas sobre a Natureza Humana. Kant (1724 – 1804) parte da premissa de que o que caracteriza e distingue o ser humano das demais espécies é o fato dele ser racional. O ponto de partida desta "Visão Essencialista” é a existência de uma lei básica na qual toda pessoa seria um fim em si mesma e nunca poderia ser tratada como meio. Portanto, o ser humano, por possuir Autonomia e Vontade, tem uma relevância inerente à sua natureza, consequentemente, isso o torna portador de dignidade. 

A Concepção Naturalista-Liberal do Direito, presente na Declaração Universal, embora tenha tido um papel fundamental para a disseminação de um desenvolvimento ético da humanidade, revela sua contradição na vida concreta que escancara que quatro quintos da população da Terra vive em condições de extrema miséria, desprovida de qualquer oportunidade de escolher autonomamente, enquanto os outros um quinto concentra toda a riqueza do mundo, podendo exercer sua autonomia de escolha diante de um cardápio vasto de opções e privilégios.

Por si só, esta existência extremamente desigual persistente na humanidade põe por terra esta teoria liberal que afirma que, pelo simples fato de sermos humanos, somos portadores de dignidade. A esta afirmação (nós somos iguais) devemos contrapor uma negação (não nascemos iguais e nem somos iguais) para, ao mesmo tempo, inaugurar uma outra perspectiva onde o "somos iguais” ceda lugar para um dever ser ético no mundo que altera o imperativo somos para um compromisso civilizatório de que devemos nos tornar iguais no campo dos direitos e diferentes nas maneiras singulares de levarmos a nossa própria vida.

Afinal, se não se nasce realmente livre e igual em direitos e dignidade, e o simples fato de ser um ser humano não conferir efetivamente uma gama universal de direitos, já que é um fato a ser verificado no contexto social, cultural, econômico, jurídico, político em que cada um está inserido, qual seria então o fundamento dos direitos humanos?
Herrera Flores (1956) afirma que o fato de sermos seres de relações nos coloca diante do outro (relações intersubjetivas), de nós mesmos (relações subjetivas) e da natureza (relações ecológicas). Esta nossa existência relacional faz com que, através das nossas ações, sejamos capazes se inserir outras ordens instituidoras do viver coletivo, novos direitos, novas culturas, outras civilidades ecologicamente afetivas, enfim, de produzir uma nova humanidade solidária e generosa com a pluralidade presente nos jeitos de andar a vida. Isto inclui a oportunidade de inventar e instituir alternativas aos modelos jurídicos, políticos, culturais e econômicos hegemônicos que se contraponham à colonização econômica da vida humana através da criação de espaços de resistência, de lutas e de conquista de uma existência plena, inclusiva e humanitária. Esta visão pressupõe romper com a pior das privatizações, que é aquela que quer se apropriar da nossa capacidade de insurgir contra as injustiças, de resistir diante das imposições do poder que quer limitar o nosso viver à uma vida nua, meramente restrita à sobrevivência biológica. Portanto, o que permanece inarredável nesta perspectiva é o direito de ter direito e de instituir novos direitos.

Para mim, Emmanuel Lévinas (1906 – 1995) foi o filósofo que mais buscou pensar a dimensão dos direitos e da cidadania sobre o olhar da ética e da justiça. Ao colocar na relação do eu com o outro radicalmente diferente de mim mesmo o pressuposto da alteridade, Lévinas sai de uma tradição de pensamento "eu-razão-centrado” na realização de suas vontades, para realocar o exercício da verdadeira liberdade no meio de um viver cotidiano no qual eu sou responsável pelo outro que não é "eu mesmo”. Ou seja, através da introdução do outro radicalmente diferente de mim mesmo (alteridade), Lévinas desdobrou a ideia de Justiça para o campo da Política. Desta forma, este pensador, professor e amigo de Derrida (1930 – 2004), nos apresenta novos parâmetros para a compreensão do sentido ético do "dever ser jurídico” (fazer justiça) diante do Estado e da pluralidade da sociedade contemporânea.

Em função desta dobra — no sentido deleuziano — no pensamento filosófico de algumas vertentes clássicas (Aristóteles, Cícero, Kant e Hegel), nas quais a ideia de justiça leva em conta somente o próprio sujeito, Lévinas intromete o outro, o outro que não é possível identificar logo de cara, que é despojado, que é despido de qualquer qualificação e que se apresenta como um rosto que me desafia a não matá-lo, tanto no sentido real quanto no metafórico. É a não indiferença ante à fome do outro, à sua necessidade (e a de todos nós) de ser levado em conta, abrindo, através deste gesto amoroso, mãos e portas, que torna possível a hospitalidade humana, a gentileza e a cordialidade prevalecerem ante à hostilidade e a bestialidade daqueles que se acham uma raça superior escolhida por deus ensimesmado. É a partir daí que se instaura uma relação nova que merece o nome de responsabilidade e que põe em questão a autonomia individualista associada à uma vontade egoísta.

O que tem de original nesta "ética da alteridade radicalizada” é que ela não fica restrita a uma relação entre "eu” e "um outro”, onde prevaleceria os ensinamentos do Levítico (texto bíblico) — "Ama ao próximo como a ti mesmo” —, fazendo aparecer um terceiro outro, cuja presença não somente testemunha esta relação entre "eu” (primeira pessoa) e outro (segunda pessoa), mas possibilita o surgimento de um nós (terceira pessoal do plural) que reafirma que somos diferentes uns dos outros (mas não desiguais no campo dos direitos), uma vez que compartilhamos de um mesmo tempo e de um mesmo espaço de convivência. 

Em uma relação a dois ama-se o outro como se não houvesse mais ninguém neste mundo, ama-se o outro em detrimento de todos os outros existentes e, com isso, afasta-se qualquer possibilidade de justiça, uma vez que cabe a um terceiro somente assistir ferido a cena de dois seres apaixonados. O estar face a face com um outro nos questiona sobre a Ética, ao passo que, na presença de um terceiro, além da ética, o que se questiona é a Justiça. São nestes entremeios das relações "eu” e o "outro”, "eu”, o "outro” e "um terceiro outro” que se inserem a Política e o Estado, consequentemente, as Políticas Públicas de garantia de Direitos.

O terceiro outro da relação surge para inaugurar a responsabilidade do eu frente às necessidades do Político, pois não há apenas "eu” e o "outro” no mundo. O outro, assim como eu, nunca está sozinho nestes encontros. Daí surge a importância de se compreender e praticar a relação ética que se dá entre várias pessoas em meio à sociedade. Trata-se, enfim, de pensar uma ordem política que leve em conta a convivência generosa das pessoas na cadência da pluralidade humana. Por isso, a questão dos Direitos Humanos, dentro da perspectiva de Lévinas, não é uma questão da direita e nem da esquerda: é uma questão que diz respeito a todos nós. Somente os fascistas e os nazistas não se dão conta disto. 

Neste momento, são eles que ocupam o poder no Brasil. Compete a nós, amantes da democracia e das liberdades, enfrenta-los no campo das ideias, das narrativas, mas sobretudo, no campo da vida real onde o povo sem nada e sem direito encontra-se iludido com os sermões e as promessas dos falsos profetas do apocalipse.






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