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Cacau Lopes

Médico e professor da Famerp


Esquerda Volver!

Por: Cacau Lopes
29/10/2019 às 14:59
Cacau Lopes

A vitória de Alberto Fernández na Argentina, da centro-esquerdista Claudia López, lésbica assumida, eleita prefeita de Bogotá, as manifestações de rua que se avolumam a cada dia no Chile, em que pese as frustradas tentativas do presidente Sebastián Piñera de amenizar sua agenda neoliberal e de repressão, a eleição majoritária do Partido Socialista, comandado por Antônio Costa, em Portugal, a queda de popularidade de Donald Trump e as possíveis consequências do processo de impeachment aberto na Câmara dos Representantes nos EUA, entre outros acontecimentos recentes, reaqueceram as esperanças de que aqui, no Brasil, uma "nova primavera” se anunciará em breve em meio ao "inverno e inferno avassalador” do desgoverno Bolsonaro e do seu fiel escudeiro Paulo Guedes. Será? 

Assim como há, em pleno século XXI, muitos adeptos do terraplanismo, também existem correntes de esquerda que apregoam que, existindo vida em outro planeta, a sociedade aí instalada será necessariamente socialista. Da mesma forma que Francis Fukuyama, ao observar a expansão da cultura do consumo na antiga União Soviética e na Europa Oriental, decretou a vitória definitiva do capitalismo sobre o comunismo, através do seu livro "O Fim da História e o Último Homem”, muitos esquerdistas, leitores enviesados de Marx, insistem que no final dos tempos, em virtude das crises cíclicas do capital, o socialismo reinará sobre a terra, acabando, assim, com a exploração do homem sobre o homem, do homem sobre a natureza, libertando a vida humana de todas as amarras da opressão. A história, por si só, já encarregou de nos mostrar o quanto estas teorias desencarnadas foram e continuam sendo meros devaneios que não têm sustentação na vida real. A história está a todo tempo a nos dizer que ela não tem um fim e nem fim.

Karl Marx, em sua obra clássica "O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, escreve que "os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Meu entendimento desta frase do fundador do materialismo histórico é de que, para além da minha vontade e do meu desejo, existem circunstâncias restritas a determinados locais, contextos que são singulares, não transportáveis para outras realidades que potencializam ou não acontecimentos transformadores. Portanto, não é porque estão acorrendo em alguns lugares movimentos e resultados eleitorais no contra fluxo do pensamento fascista e neoliberal que se alastra pelo mundo que, necessariamente, ou, até naturalmente, este processo vai acontecer por contágio na "República do Nióbio e dos Laranjas”.

Para além da nossa imensa extensão territorial, distanciando terra e mar, capitais e interior, matas e sertões, planícies e montanhas, temos uma alma crivada de várias cores. Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, no livro "Brasil: Uma Biografia”, escrevem que os nossos vários rostos, nossas diferenciadas feições, nossas muitas maneiras de viver, pensar e sentir comprovam a mescla profunda que deu origem aos nossos jeitos diferentes de experimentar e compreender o país. Nossa pele fronteiriça, forjada no encontro forçado de ameríndios, europeus e africanos, resultando em modos de convivência discriminatórios e escravagistas, nos coloca diante do outro-igual em pé de tamanha desigualdade que dificulta nos enxergamos como pertencentes a um povo que foi chamado de brasileiro. Temos uma imensa dificuldade de entender uns aos outros. Alguns, por se considerarem "europeus-arianos-americanizados”, se sentem obrigados a viverem aqui com essa "gentinha”, e, muitos outros, milhões, por se acharem exilados na sua própria terra, tão grande é o descaso do poder público com suas vidas, se veem como estrangeiros em seu próprio país. Este desencontro da gente com a gente mesmo levou o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro "Raízes do Brasil”, a cunhar o termo "bovarismo” ao se referir a este "invisível desencanto em face das nossas condições reais”. É como se a todo momento vivêssemos uma evasão coletiva, que nos permite recusar o país real em que vivemos para, automaticamente, imaginar um Brasil diferente daquilo que ele é e, ao mesmo tempo, nos sentir impotentes para modifica-lo.

Nenhum país da América Latina, e poucos no mundo, possui uma elite conservadora e escravocrata que domina os cinco maiores meios de comunicação em massa, concentra mais riqueza do que mais da metade da população, um Estado que se capilariza por todo território nacional e que impõe tecnologias de domesticação dos corpos e dos desejos, uma rede de seitas e crenças religiosas que, em muitos lugares, é a única alternativa de pertencimento, assim como o narcotráfico, para milhões de pessoas impossibilitadas de experimentarem a vida em um espaço público provedor, acolhedor, aonde reine a liberdade e a justiça. Tudo isso e muito mais apontam para uma singularidade do contexto e da conjuntura brasileira que a esquerda está muito longe de compreender.

Querendo ou não as outras agremiações e partidos, foi através do petismo-lulismo que a população brasileira experimentou um governo que, mesmo sabendo de todos os matizes e conflitos que este termo carrega, podemos denominar de esquerda. Não importa qual o nome ou categoria que intelectuais, militantes e nós queiramos dar ao governo Lula e Dilma. O que importa, para mim, é o que ficou na narrativa e na representação popular foi que, neste período, o Brasil foi governado por um partido de esquerda, marxista e socialista. Com a vitória de Bolsonaro — todos nós sabemos qual foi sua estratégia, principalmente no segundo turno —, o país, através do voto popular, muda sua rota totalmente para a direita, embora houvessem opções mais ao centro. A partir daí, mais do que menino usar azul e menina vestir rosa, a promessa que se fez foi a de que entraríamos em uma onda de prosperidades, uma vez que todos os vieses ideológicos dos inimigos da família, do empreendedorismo, das religiões e suas práticas corruptas foram derrotadas. Eis que os primeiros dez meses desastrosos do governo Bolsonaro e família, as vitórias de políticos do campo da esquerda e movimentos populares de países vizinhos reacenderam a nossa esperança de retomar o Brasil para todos. Plagiando  Freud, caberia perguntar se o futuro é uma Ilusão, ou melhor, qual será o futuro de uma ilusão?

Para se construir o futuro, é necessário entender o presente e aprender com o passado. Nos últimos anos, mais do que nunca, a sociedade brasileira demonstrou o quanto ela é esfacelada, diversa, multifacetada e complexa. Os referenciais tradicionais da esquerda, centrados em partidos, sindicatos e outras organizações corporativas não se prestam mais para acolher e fazer movimentar a sociedade em busca de algo diferente do que está aí. Estes partidos, não entendendo e não querendo entender o que está acontecendo no Brasil, encontram-se mais preocupados com táticas e estratégias para determinar quem vai ser o principal protagonista da nova história, do que buscar entender e estar juntos dos velhos e novos anseios populares. O PT e Lula, ao meu ver, é o exemplo mais acabado daquilo que estou tentando dizer. Ao se colocarem como portadores de um passado de prosperidade e justiça, se posicionam, de antemão, na condição do Moisés que irá guiar com seu cajado o povo em direção ao paraíso perdido. Não estou aqui desconsiderando tudo o que foi feito, muito menos diminuindo a liderança do Lula diante das lutas que se fazem necessárias. Quem sou eu frente ao tamanho do personagem histórico Lula. Por ser avesso a qualquer mito, ídolo ou salvador da pátria, seja de esquerda e muito menos de direita, sempre acho que "se muito vale o já feito, mais vale o que virá”. Somente para lembrar a continuidade da canção de Milton Nascimento, interpretada como ninguém por Elis Regina, "e o que foi feito é preciso conhecer, para melhor prosseguir. Falo assim sem tristeza, falo por acreditar, que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer. Outros outubros virão...”.

As lutas dos povos indígenas contra a destruição das florestas, os movimentos ambientalistas, a saga dos nordestinos limpando as manchas de óleo de suas praias, mares, mangues e rios, os movimentos dos negros, das mulheres, da juventude em defesa da educação pública, da pesquisa científica, e outros tantos que explodem aqui e acolá por estas bandas, estão a demonstrar que não queremos mais do mesmo, que não queremos somente uma cidadania pelo consumo e pelo acesso, não queremos mais um populismo desenvolvimentistas baseado no petróleo e no alagamento de terras dos nativos, que não queremos mais moradias apertadas que nos empurram cada vez mais longe das delícias da cidade e para onde não vive ninguém, que não queremos mais justificar a corrupção em nome de uma falsa governabilidade. Se quisermos impulsionar movimentos capazes de resgatar a democracia, a liberdade, os direitos de cidadania destruídos nos últimos anos, teremos que ter a capacidade de compor com todas as forças antifascistas e com todos os desejos de liberdade e de vida que estão adormecidos nos corações da maioria dos brasileiros e das brasileiras que sempre foram vistos como massa eleitoral à disposição do mito de plantão. O futuro do Brasil será aquilo que todos nós, que olhamos a vida a partir do outro que se encontra ao nosso lado e da terra-mãe que nos acolhe, formos capazes de desejar, contagiar e fazer acontecer.






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